domingo, 10 de janeiro de 2016

Os Dez Mandamentos e o papelão na dramaturgia da Record e da Globo em 2015

O ano de 2015 marcou algumas das situações mais bizarras da televisão brasileira. O conservadorismo cada vez mais doentio da sociedade, que torna incapaz de aceitar o diferente, o novo, associado a um clima de hostilidade entre as pessoas, acabou atingindo o comportamento do brasileiro diante da telinha.

É que no dia 16 de março a Rede Globo estreou sua nova novela das nove: Babilônia. Escrito a seis mãos, entre elas o experiente Gilberto Braga (de Escrava Isaura, Vale Tudo, Celebridade), junto com João Ximenes Braga e Ricardo Linhares, apoiados por um elenco estelar, com grifes como Fernanda Montenegro, Glória Pires, Adriana Esteves, o folhetim causou espanto do público já no primeiro episódio, ao exibir a cena de um beijo lésbico entre as personagens de Montenegro e Nathalia Timberg.

No dia seguinte, campanhas de boicote, inclusive vindas do Congresso Nacional, e mensagens raivosas à Natura, patrocinadora do programa, pedindo para que fosse retirada a publicidade na novela, se espalharam pelas redes sociais e, principalmente entre as igrejas.

É gente, as igrejas estão cada vez mais querendo dizer até mesmo o que deve e o que não deve passar na televisão.

Não à toa que, na semana seguinte, no dia 23 de março, a Rede Record levou ao ar aquilo que ela chamou como “a primeira novela bíblica da história da televisão”, Os Dez Mandamentos: um prato cheio para todos aqueles que estavam fazendo campanha contra a Rede Globo. E prato cheio para as igrejas também, claro. Não que a história de Vivian de Oliveira tivesse sido fiel e correta em relação aos escritos bíblicos, mas isso é detalhe diante de tudo o que a novela mostrou.

Um pouco mais adiante, caros leitores, eu devo mencionar o papelão da Record em relação à sua falta de planejamento no tocante a este projeto. Mas antes de chegar lá, quero registrar que até mesmo a gigante Globo se comportou de maneira vergonhosa diante do fracasso da sua novela e do avanço da concorrência no horário.

É que, para agradar aqueles que estavam apedrejando Babilônia, a Globo recomendou que a novela fosse totalmente alterada. Com isso, personagens ficaram descaracterizados, outros desapareceram, alguns núcleos tornaram-se inúteis, tramas que prometiam um desenrolar interessante foram descontinuadas e, aqueles que ainda se interessaram minimamente por todas aquelas coisas novas que haviam sido propostas, foram desanimando ao ver o que a narrativa estava se tornando: aos poucos, uma colcha de retalhos sem sentido.

Como as alterações não causaram nenhum efeito positivo, a Globo começou a promover um tal de estica-e-puxa na grade que ficou feio de se ver. Jornal Nacional ficava mais longo, novela mais curta, outros dias um atrasava, ou adiantava, enfim... Uma bagunça que só.

Com tudo isso, a Record se beneficiou. Em primeiro lugar, como eu disse, a onda conservadora que está inundando o país se sentiu prestigiada ao ver a adaptação de uma conhecidíssima e milenar história religiosa. Depois, com o comportamento primário da Globo, mais pessoas resolveram conferir o que havia no canal ao lado, ao perceber que a gigante da teledramaturgia estava perdida na condução do seu principal produto. E, por último, e — na minha visão — menos importante, a necessidade das pessoas de buscarem uma trama escapista, diante de tantas notícias ruins e indignantes que reinaram na imprensa nacional em 2015. Neste sentido, Os Dez Mandamentos era como uma massagem para o anseio de entretenimento longe da realidade, algo que Babilônia não estava propondo.

Mas muito do que eu disse aqui já é bem conhecido de quem acompanha notícias sobre os bastidores da TV. O ponto que eu queria chegar era especificamente sobre a trama de Os Dez Mandamentos. A novela fez história ao bater, em audiência, o principal produto da televisão brasileira (a novela das nove da Rede Globo) e ao dar índices de duas casas decimais à Record, nada acostumada a essa realidade.

O burburinho que a novela causou nas redes sociais também foi uma coisa digna de registro. Foi uma trama comentada, que incomodou a Globo, mexeu também com as outras concorrentes, alterou o comportamento do brasileiro diante da TV e pegou até mesmo a própria Record desprevenida.

Mas tudo isso, devo dizer, não tem nada a ver com a qualidade da novela. Muito pelo contrário. Como também já ressaltei, a Record foi feliz por colocar na sua grade um produto certo na hora certa. Nem mesmo os efeitos digitais importados da mesma empresa responsável pelo seriado The Walking Dead são dignos de elogio, ao se considerar as questões técnicas e artísticas.

A novela parecia mais um teatro de igreja: os figurinos extremamente coloridos, a direção de arte e os cenários completamente artificiais, as atuações exageradas (quando não mecânicas), as falas impostadas demais (isso quando não se tentava fugir da formalidade e acabava caindo no extremo oposto: a coloquialidade exagerada), sem contar com o tom de pregação que a novela cultivou ao longo dos seus mais de 170 capítulos. Um martírio. Teve até extintor de incêndio que apareceu em um dos capítulos (em pleno Egito Antigo), revelando a falta de precisão da equipe técnica a certa altura, já que o ritmo de gravações estava extenuante.

A cena da travessia do Mar Vermelho, ponto alto da trama, conseguiu ser mais chata do que piada de tio velho na ceia de Natal. Blocos inteiros com closes sem diálogos, cheios de caras e bocas, com efeitos digitais vergonhosos (ok que é extremamente caro executar coisas desse tipo. Mas se viram que a coisa ia ficar tão artificial, poderiam diminuir um pouco a escala). Mas não. Na visão do elenco e da produção, a Record estava colocando no ar a sétima maravilha do mundo. Não havia nenhuma autocrítica. Iludidos pelos números, tomaram para si a crença de que o produto era inquestionável, primoroso, de fazer inveja de Hollywood. Quanto engano!

Não deu outra: após este ápice da história, a audiência caiu, segundo o Ibope. Curiosamente, essa é uma característica totalmente contrária a qualquer telenovela. Normalmente os últimos capítulos é que batem recordes, que chamam um público que não costumava acompanhar a trama, e o desfecho de qualquer novela acaba trazendo números superiores ao dia a dia de qualquer folhetim.

Em Os Dez Mandamentos, no entanto, houve uma situação brochante. Um anticlímax horroroso, imperdoável para qualquer pessoa que entenda minimamente de um roteiro. O clímax da novela era justamente a travessia do Mar Vermelho, a fuga do Egito. Ainda assim, a novela se estendeu por mais algumas semanas e, no fim das contas, não terminou. Acabou com um “continua”.

O momento-título da novela nem chegou a acontecer, porque o protagonista, Moisés, sequer chegou a entregar as tábuas da Lei para o povo hebreu. Flagrando a traição de seu povo a Deus, o profeta quebrou as pedras e, em mais uma cena cheia de closes, caras e bocas, trilha exagerada e embarrigada (que é como se diz nas situações em que uma novela se enrola demais, quando não acontece nada relevante à trama), o folhetim acabou.

Isso é consequência do papelão — dessa vez — da Record. Impressionada com os números que nem mesmo ela esperava, perdida diante da falta de domínio sobre o que fazer com a trama de sucesso que tinham em mãos, tomaram decisões diferentes em dias seguidos a respeito do que viria depois de Os Dez Mandamentos. Com uma novela inteiramente gravada (Escrava Mãe) e temendo perder aquilo que havia conquistado, a emissora da Igreja Universal primeiro disse que levaria adiante seus planos de substituir a trama bíblica pela história de escravos (chegou até a exibir chamadas da nova novela). Em seguida, afirmou que colocaria no ar A Terra Prometida, sequência direta da saga de Moisés, mas ao ver que não conseguiria produzir a tempo o novo folhetim, cortou a trajetória do povo hebreu pela metade, anunciou uma segunda temporada, terminou a novela sem terminar, colocou no ar, pela terceira vez, a reprise de séries bíblicas, e está prometendo a sequência de Os Dez Mandamentos para o primeiro semestre deste ano, em, no mínimo, 60 capítulos. Depois deve estrear a história de Josué, sucessor de Moisés, na tomada da terra prometida, que dará título à novela.

Fato é que, com tudo isso, muito embora conquiste audiência e, de alguma maneira, um espaço de mais prestígio na produção de telenovelas, a Record demonstra amadorismo e falta de confiança em sua própria capacidade de fazer dar certo uma história anteriormente planejada (A Escrava Mãe) e revela estar perdida na administração da sua programação.

Embora a Rede Globo tenha perdido, em audiência, algumas batalhas, ela segue como vencedora da guerra. Ainda que a qualidade das histórias apresentadas tenha decaído muito nos últimos anos, os aspectos técnicos da emissora carioca são imbatíveis. E é sintomático perceber que, mesmo com resultados aquém dos habituais e perdendo público para a internet, para a TV sob demanda e os canais fechados, a Globo mantém-se como líder absoluta na teledramaturgia nacional. Tanto em qualidade técnica quanto em alcance.

Enquanto a Record não acreditar na própria capacidade e tratar a sua programação como uma brincadeira de criança, que desiste, retoma e volta atrás quando quer, ela nunca será uma Rede Globo. Esteja o Mar Vermelho aberto ou completamente fechado.

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